Mario Sergio Cortella
Professor-Titular do Departamento de Teologia e Ciências
da Religião da PUC-SP
Ressaltemos desde o início: a ética é uma questão
absolutamente humana! Só se pode falar em ética quando se fala em humano,
porque a ética tem um pressuposto: a possibilidade de escolha. A ética
pressupõe a possibilidade de decisão, ética pressupõe a possibilidade de opção.
É impossível falar em ética sem falar em liberdade. Quem
não é livre não pode, evidentemente, ser julgado do ponto de vista da ética.
Outros animais, ao menos nos parâmetros que utilizamos, agem de forma
instintiva, não deliberada, sem uma consciência intencional. Cuidado. Há quem
diga: “Eu queria ser livre como um pássaro”; lamento profundamente, pois
pássaros não são livres, pássaros não podem não voar, pássaros não podem
escolher para onde voam, pássaros são pássaros. Se você quiser ser livre, você
tem de ser livre como um humano. Pensemos em algo que pode parecer extremamente
horroroso: como disse Jean-Paul Sartre, nós somos condenados a ser livres.
Da liberdade, vêm as três grandes questões éticas que
orientam (mas também atormentam, instigam, provocam e desafiam) as nossa
escolhas: Quero? Devo? Posso? Retomemos o cerne: o exercício da ética pressupõe
a noção de liberdade. Existe alguém sobre quem eu possa dizer que não tem
ética? É possível falar que tal pessoa “não tem ética”? Não, é impossível. Você
pode dizer que ele não tem uma ética como a tua, você pode dizer que ele tem
uma ética com a qual você não concorda, mas é impossível dizer que alguém não tem
ética, porque ética é exatamente o modo como ele compreende aquelas três
grandes questões da vida: devo, posso, quero?
Tem coisa que eu devo mas não quero, tem coisa que eu
quero mas não posso, tem coisa que eu posso mas não devo. Nessas questões, vivem
os chamados dilemas éticos; todas e todos, sem exceção, temos dilemas éticos,
sempre, o tempo todo: devo, posso, quero? Tem a ver com fidelidade na sua
relação de casamento, tem a ver com a sua postura como motorista no trânsito;
quando você pensa duas vezes se atravessa um sinal vermelho ou não, se você
ocupa uma vaga quando vê à distância que alguém está dando sinal de que ele vai
querer entrar; quando você vai fazer a sua declaração de Imposto de Renda;
quando você vai corrigir provas de um aluno ou de um orientando seu; quando
você vai cochilar depois do almoço, imaginando que tem uma pia de louça que
talvez seja lavada por outra pessoa, e como você sabe que ela lava mesmo, e que
se você não fizer o outro faz, você tem a grande questão ética que é: devo,
posso, quero? Por exemplo, quando se fala em bioética: podemos lidar com
clonagem? Podemos, sim. Devemos? Não sei. Queremos? Sim. Clonagem terapêutica,
reprodutiva? É uma escolha. Posso eu fazer um transplante intervivos? Posso.
Devo, quero? Tem coisa que eu devo, mas não quero; aliás, a área de Saúde, de
Ciência e Medicina, é recheada desses dilemas éticos. Tem muita coisa que você
quer, mas não pode, muita coisa que você deve, mas não quer.
Na pesquisa, já imaginou? Por que montamos comitês de
pesquisa, por que a gente faz um curso sobre ética na pesquisa? Porque isso é
complicado, e se fosse uma coisa simples, a gente não precisava fazer curso,
não precisava estudar, não precisava se juntar. É complicadíssimo, porque
estamos mexendo com coisas que têm a ver com a nossa capacidade de existir.
Quando se pensa especialmente no campo da ética, a relação com a liberdade traz
sempre o tema da decisão, da escolha. Por que estou dizendo isso? Porque não dá
para admitir uma mera repetição do que disseram muitos dos generais
responsáveis pelo holocausto e demais atrocidades emanadas do nazismo dos anos
de 1940. Exceto um que assumiu a responsabilidade, todos usaram o mesmo
argumento em relação à razão de terem feito o que fizeram. Qual foi? “Eu estava
apenas cumprindo ordens”. “Estava apenas cumprindo ordens”, isso me exime da
responsabilidade? Estava apenas obedecendo... Essa é uma questão séria, sabe
por quê? Porque “estava apenas cumprindo ordens” implica a necessidade de
pensarmos se a liberdade tem lugar ou não.
Ética tem a ver com liberdade, conhecimento tem a ver com
liberdade, porque conhecimento tem a ver com ética. Por isso, se há algo que
também é fundamental quando se fala em ciência, ética na pesquisa e produção do
conhecimento, é a noção de integridade. A integridade é o cuidado para se
manter inteiro, completo, transparente, verdadeiro, sem máscaras cínicas ou fissuras.
Nessa hora, um perigo se avizinha: assumir- se individual ou coletivamente uma
certa “esquizofrenia ética”. Ela desponta quando as pessoas se colocam não como
inteiras, mas repartidas em funções que pareceriam externas a elas. Exemplos?
“Eu por mim não faria isso, mas, como eu sou o responsável, tenho de fazê-lo”.
Ora, eu não sou eu e uma função, eu sou uma inteireza, eu não sou eu e um
professor, eu e um pesquisador, eu e um diretor, eu e um Secretário, eu sou um
inteiro. “Eu por mim não faria”, então eu não faço!
Cautela! Coloca-se um estilhaçamento da integridade: “Eu,
por mim, não lhe reprovaria, mas como eu sou seu professor, eu tenho que
reprovar”; “Eu, por mim, não lhe mandaria embora, mas como eu sou seu
chefe...”; “Eu, por mim, não lhe suspenderia, mas como eu sou seu superior...”;
“Eu, por mim, não faria isso, mas como eu sou o contador...”; “Eu, por mim, não
faria isso, mas como eu sou o responsável pelo laboratório...”.: “Eu por mim
não faria”, então eu não faço; “Eu por mim não lhe reprovaria”, então não
reprovo. De novo: eu não sou eu e uma função, eu não sou eu e um pesquisador,
eu e um chefe do laboratório, eu e um diretor de instituto, eu e um
Secretário... O esboroamento da integridade pessoal e coletiva é a incapacidade
de garantir que a “casa” fique inteira, e para compreender melhor a idéia de
“casa íntegra”, vale fazer um breve passeio pelas palavras. Talvez as pessoas
que estudaram um pouco de etimologia se lembrem que a palavra ética vem pra nós
do grego ethos, mas ethos, em grego, até o século VI a. C., significava morada
do humano, no sentido de caráter ou modo de vida habitual, ou seja, o nosso
lugar. Ethos é aquilo que nos abriga, aquilo que nos dá identidade, aquilo que
nos torna o que somos, porque a sua casa é o modo como você é, onde está a sua
marca. Mais tarde, esse termo para designar também o espaço físico foi
substituído por oikos. Aliás, o conhecimento mais valorizado na sociedade grega
era o que cuidava das regras da casa, para a gente poder viver bem e para
deixar a casa em ordem. Como o vocábulo nomos signifi ca “regra” ou “norma”,
passou-se a ter a oikos nomos (a economia) como a principal ciência. No
entanto, a noção original de ethos não se perdeu, pois os latinos a traduziram
pela expressão more, ou mor, que acabou gerando pra nós também uma dupla
concepção; uma delas é “morada”, e a outra, que vai ser usada em latim, é o
lugar onde você morava, o seu habitus. Olha só, a expressão “o hábito faz o
monge” não tem a ver com a roupa dele, habitus; habitus é exatamente onde nós
vivemos, o nosso lugar, a nossa habitação.
Quando se pensa em ética e produção do conhecimento hoje,
a grande questão é: como está a nossa possibilidade de sustentar a nossa
integridade; essa integridade, como se coloca? A integridade da vida individual
e coletiva, a integridade daquilo que é mais importante, porque uma casa,
ethos, tal como colocamos, é aquela que precisa ficar inteira, é aquela que
precisa ser preservada. Como está a morada do humano? Essa morada do humano
desabriga alguém? Alguém está fora da casa, alguém está sem comer dentro dessa
casa? Alguém está sem proteção à sua saúde, alguém está sem lazer dentro dessa
casa? Essa morada do humano é inclusiva ou é exclusiva? Essa morada do humano
lida com a noção de qualidade em ciência, ou lida com a noção de privilégio?
Cuidado. Duas coisas que se confundem muito em ciência são qualidade e
privilégio; qualidade tem a ver com quantidade total, qualidade é uma noção
social, qualidade social só é representada por quantidade total. Qualidade sem
quantidade não é qualidade, é privilégio. São Paulo é uma cidade em que se come
muito bem, é verdade; quem come, quem come o quê? Qualidade sem quantidade
total não é qualidade, é privilégio. Todas as vezes em que se discute essa
temática, aparece a noção de uma qualidade restrita, e qualidade restrita,
reforcemos, é privilégio. Nesse sentido, a grande questão volta: será que, na
morada do humano, alguém está desabrigado? Será que essa casa está inteira, ela
está em ordem nessa condição? Nessa nossa casa, quando a gente fala em cuidado,
é o mesmo que falar em saúde; aliás, quando digo: “eu te saúdo”, ou, “queria
fazer aqui uma saudação”, etimologicamente é a mesma coisa. Saudar é procurar
espalhar a possibilidade de cuidado, de atenção, de proteção. Nossa casa, que
casa é essa? Há nela saúde? A ética é a morada do humano; como essa casa é
protegida? Qual é o lugar da ciência dentro dela? Qual é o papel que ela
desempenha? Qual é a nossa tarefa nisso, para pensar exatamente aquelas três
questões: posso, devo, quero?
É claro que essas questões e suas respostas não são
absolutas, elas não são fechadas, elas são históricas, sociais e culturais. A
mesma pergunta não seria feita do mesmo modo há vinte anos; a grande questão no
nosso país há cento e cinqüenta anos, a grande questão ética há cento e
cinqüenta anos era se eu podia açoitar um escravo e depois cuidar dele, ou só
açoitá-lo e deixá-lo pra ser cuidado pelos outros; se eu poderia extrair o
dente de alguém, se é mais recomendável para o dentista que ele faça a extração
ou que ele tente o tratamento. Há alguns anos, algumas décadas, uma discussão
de natureza ética era algo que nem passaria pela cabeça de um dentista. A
pessoa chegava ao seu consultório e dizia: “Eu quero que o senhor arranque
todos os meus dentes”. Ele respondia: “Tá bom”; hoje, você tem outra questão. O
mesmo vale em relação ao uso de contraceptivos ou à legalização do aborto
consentido, ou ainda sobre a separação entre princípios religiosos e conduta
científica. Quando se pensa na manutenção da integridade, do devo, posso e
quero, a grande questão, junto com essa tríade, é se estamos dirigindo, como
critério último, a proteção da morada do humano, da morada coletiva do humano.
Afinal de contas, não somos humanos e humanas individualmente, pois só o somos
coletivamente. Fala-se muito em vivência, quando referimos a vida humana; no
entanto, o mais correto seria sempre dizer convivência, pois ser humano é ser
junto. Desse modo, a noção de ethos, a noção de morada do humano, oferece um
critério para responder ao posso, devo e quero, que é: protejo eu a morada ou
desprotejo? Incluo ou excluo? Vitimo ou cuido?
Em um livro delicioso e de complexa leitura, Ética da
Libertação, Enrique Dussel escreve sobre um percurso da história da ética
dentro do mundo. Começa exatamente mostrando o lugar que a reflexão ética ocupa
na história humana, mas conclui com algo que alguns até achariam curioso, hoje:
ele não aceita a noção do termo exclusão, ou falar em excluídos, porque acha
que a noção de excluído é muito pequena e insuficiente. Dussel, ao pensar a
Ética e os processos sociais, econômicos e culturais, trabalha com a noção de vítimas:
as vítimas do sistema, as vítimas da estrutura. Pensa ele que, quando se fala
em excluído, dá-se a impressão de que é uma coisa um pouco marginal, lateral,
enquanto vitimação é uma idéia mais robusta e incisiva. A principal virtude
ética nos nossos tempos, para poder manter a integridade e cuidar da casa, da
morada do humano, é a incapacidade de desistir, é evitar o apodrecimento da
esperança, é evitar aquilo que padre Antonio Vieira apontou, no começou de um
de seus Sermões, da seguinte maneira: “O peixe apodrece pela cabeça”. Já viu um
peixe apodrecer? Tal como algumas pessoas, ele apodrece da cabeça para o resto
do corpo... Um olhar sobre a ética em ciência e na pesquisa tem uma finalidade:
manter a nossa vitalidade, manter a nossa vitalidade ética, mostrar que nós
estamos preocupadas e preocupados, que a gente não se conforma com a
objetividade tacanha das coisas, que a gente não acha que as coisas são como
são e não podem ser de outro modo, que a gente não se rende ao que parece ser
imbatível.
Ser humano é ser capaz de dizer não, ser humano é ser
capaz de recusar o que parece não ter alternativa, ser humano é ser capaz de
afastar o que parece sem saída. Ser humano é ser capaz de dizer não, e só quem
é capaz de dizer não pode dizer sim; aí está a nossa liberdade. Tem gente que
diz assim: “Ah, a minha liberdade acaba quando começa a do outro”; cuidado, a
minha liberdade acaba quando acaba a do outro. Liberdade, como saúde, tem de
ser um conceito coletivo, a minha liberdade não acaba quando começa a do outro,
a minha liberdade acaba quando acaba a do outro. Se algum humano não for livre,
ninguém é livre, se algum homem ou mulher não for livre da falta de trabalho,
ninguém é livre; se algum homem ou mulher não for livre da falta de socorro, de
saúde, ninguém é livre; se alguma criança não for livre da falta de escola,
ninguém é livre; a minha liberdade não acaba quando começa a do outro, minha
liberdade acaba quando acaba a do outro. Ser humano é ser junto, e é em relação
a isso que vale pensarmos nossa capacidade de dizer não a tudo que vitima e
sermos capazes de proteger o que eleva a Vida. O vínculo da Ética com a
Produção do Conhecimento está relacionado à capacidade deste de cuidar daquela,
isto é, manter a integridade digna da vida coletiva. Ética é a possibilidade de
recusar a falência da liberdade, a ética é a nossa capacidade de recusar a
idéia de que alguns cabem na nossa casa, outros não cabem; alguns comem, outros
não comem; alguns têm graça, outros têm desgraça.
A ética é o exercício do nosso modo de perceber como é
que nós existimos coletivamente, e então pensar com seriedade naquilo que
François Rabelais vaticinou: “Conheço muitos que não puderam, quando deviam,
porque não quiseram, quando podiam”.
Texto me fez refletir. Obrigado pela oportunidade.
ResponderExcluirAlgumas indagações:
Nem tudo que é moralmente aceito pode ser eticamente aceitável, certo?
Podemos ter decisões éticas, que não sejam morais (e legais). Por exemplo, socorrer uma pessoa, levando-a a um hospital de carro, sendo que o carro está com os documentos ilegais
Por outro lado, podemos ter decisões anti-éticas que sejam morais. Aceitar a ideologia política atual, mesmo que seja demagógica e populista.