sábado, 10 de novembro de 2012

“Minhas experiências sobre a Teologia da Libertação”


  Artigo de Gerhard Müller

A Teologia da Libertação está, para mim, vinculada ao rosto de Gustavo Gutiérrez. Em 1988 participei, junto com outros teólogos da Alemanha e da Áustria e a convite do atual diretor da Misereor, José Sayer, de um curso sobre este tema que aconteceu no já então famoso Instituto Bartolomé de las Casas. Naquele tempo, eu já estava há dois anos lecionando Dogmática na Universidade Ludwig-Maximilian de Munique.

Como professor de Teologia me eram naturalmente familiares os textos e conhecidos os representantes deste movimento teológico, surgido na América Latina, mas sobre o qual se discutia em todo o mundo, sobretudo por conta das observações, em parte críticas, da Comissão Internacional de Teólogos da Congregação para a Doutrina da Fé e as declarações de 1984 e 1986 da mesma Congregação, presidida pelo cardeal Joseph Ratzinger, nosso atual Papa Bento.

Com o seminário dirigido pelo Gustavo Gutiérrez se produziu em mim um giro da reflexão acadêmica sobre uma nova concepção teológica para a experiência com os homens para o que havia sido desenvolvida essa teologia. Para o meu próprio desenvolvimento teológico foi decisiva esta inversão no enfoque de prioridade da teoria à prática para um proceder em três passos: “ver, julgar e agir”.

Os participantes desse seminário chegávamos abarrotados de inumeráveis conhecimentos sobre a origem e o desenvolvimento da Teologia da Libertação e por isso discutimos sobretudo sobre a análise da situação à qual se lhe reprovava uma ingênua proximidade com o marxismo. Eram-nos familiares (1) as declarações das Conferências Episcopais Latino-Americanas de Medellín e de Puebla. Daí o debate de se nessas declarações se pretendia fazer do cristianismo uma espécie de programa político de libertação, no qual, em determinadas circunstâncias, se tolerava inclusive a violência revolucionária contra pessoas e coisas. Alguns suspeitavam que a Teologia da Libertação servia para legitimar a violência terrorista a serviço da legítima revolução, enquanto outros a usavam como argumento para esse fim.

A primeira coisa que Gustavo nos ensinou foi compreender que aqui se trata de teologia e não de política. Na linha das grandes encíclicas sociais dos papas também marcou de forma clara a diferença entre Teologia da Libertação e ética social católica. Enquanto a ética social se fundamenta no direito natural e pretende assegurar as bases de um estado social e justo apoiando-se nos princípios da personalidade, subsidiariedade e solidariedade, no caso da Teologia da Libertação trata-se de um programa prático e teórico que pretende compreender o mundo, a história e a sociedade e transformá-los à luz da própria revelação sobrenatural de Deus como salvador e libertador do homem.

Como se pode falar de Deus diante do sofrimento humano, dos pobres que não têm sustento para seus filhos, nem direito à assistência médica, nem acesso à educação, excluídos da vida social e cultural, marginalizados e considerados uma carga e uma ameaça para o estilo de vida de uns poucos ricos?

Esses pobres não são uma massa anônima. Cada um deles tem um rosto. Como posso, como cristão, sacerdote ou leigo, quer seja na evangelização ou no trabalho científico-teológico, falar de Deus e de seu Filho que se fez homem e morreu por nós na cruz e dar testemunho d’Ele, se não quero construir outro sistema teológico junto ao já existente, mas dizer ao pobre concreto, face a face: Deus te ama e a tua dignidade imperdível tem seu fundamento em Deus? Como se torna concreta a consideração bíblica na vida individual e coletiva se os direitos humanos têm sua origem na criação do homem à imagem e semelhança de Deus?

Minha permanência no Peru em 1988 está ligada não apenas ao seminário de Gustavo Gutiérrez, no qual vi claramente qual é o ponto de partida teológico da Teologia da Libertação, mas também ao encontro vivo com os pobres dos quais havíamos falado. Durante algum tempo vivemos com os moradores de bairros pobres de Lima e depois também com os camponeses da paróquia de Diego Irarrazaval no lago Titicada. A partir de então estive outras 15 vezes no Peru e em outros países da América Latina, às vezes meses inteiros durante as férias de semestre na Alemanha.

Minha participação em cursos teológicos, especialmente nos seminários de Cuzco, Lima e Callao, entre outros, esteve sempre acompanhada de longas semanas de trabalho pastoral nas regiões andinas, especialmente em Lares, na arquidiocese de Cuzco. Ali os rostos adquiriram um nome e converteram-se em amigos pessoais, experiência esta de Comunhão universal no amor a Deus e ao próximo, o que deve ser a essência da Igreja católica. Finalmente, foi para mim uma profunda alegria quando, em 2003, em Lares, na arquidiocese de Cuzco, sendo já bispo, pude administrar o sacramento da Confirmação a jovens cujos pais conhecia já desde há tempo e que eu mesmo havia batizado.

Essa é a razão pela qual eu não falo da Teologia da Libertação de forma abstrata e teórica nem menos ideológica para bajular o grupo eclesial progressista. De igual modo também não temo que isso possa ser interpretado como falta de ortodoxia. A teologia de Gustavo Gutiérrez, independente do ângulo a partir do qual se olha, é ortodoxa porque é ortoprática e nos ensina o adequado agir cristão porque procede da verdadeira fé.

Uma rápida leitura do livro Beber em seu próprio poço (2) coloca de manifesto que a Teologia da Libertação se fundamenta em uma profunda espiritualidade. Seu substrato é o seguimento de Cristo, o encontro com Deus na oração, a participação na vida dos pobres e dos oprimidos, a disposição para escutar seu grito pela liberdade e pelo esplendor dos filhos de Deus; é participar da sua luta para acabar com a exploração e a opressão, de sua ânsia pelo respeito aos direitos humanos e de sua exigência de participação justa na vida cultural e política na democracia. Trata-se da experiência de que não se é estranho no próprio país, mas que a Igreja e o Estado querem ser abrigos e fiadores da liberdade espiritual e cívica. A meta é o início e o acompanhamento de um processo dinâmico que quer libertar o homem de sua dependência cultural e política.

Do mesmo modo que Gustavo com sua pessoa, seu testemunho espiritual, seu compromisso com os pobres e suas magníficas reflexões deu, na nossa época, um rosto à Teologia da Libertação, assim também nos mostrou de maneira impressionante a pessoa de Bartolomé de las Casas que, no século XVI e ao contrário de seu contemporâneo Colombo, não descobriu um país e tomou posse dele para a Coroa espanhola, mas que descobriu a injusta opressão e a humilhação da população indígena e se propôs a levar aos homens o reino de Deus, no qual já não haverá senhores nem escravos, mas apenas irmãos e irmãs com os mesmos direitos.

Las Casas chegou supostamente às Índias ocidentais, o continente descoberto por Colombo que hoje chamamos de América, de aventureiro e cavaleiro da fortuna. Da perspectiva do descobridor da América tratava-se de territórios que podiam ser tomados como posse para a Coroa da Espanha e cujas riquezas e habitantes estavam privados de todo direito e, portanto, expostos à agressão da vontade ilimitada de enriquecimento. Em um princípio também Las Casas esteve imerso nesse sistema de privação de liberdade e de exploração. Mas, finalmente, reconheceu no rosto dos maltratados o rosto de Jesus Cristo e assim se converteu em intercessor eloquente e defensor dos povos oprimidos em sua pátria, a América. Com isso retornava ao sentido original da missão cristã: Jesus enviou os seus discípulos para pregar a todos os homens o Evangelho da salvação e da libertação. Neste sentido, missão como encontro de pessoa a pessoa em nome de Jesus é estritamente o contrário de uma forma apenas aparentemente religiosa de colonialismo e imperialismo. Não se pode conquistar territórios para Cristo e subjugar os seus habitantes ao domínio de um estado que se diga cristão. A pregação dos enviados em nome de Cristo supõe antes poder adotar livremente a fé. Deste modo, cria-se uma rede universal de discípulos de Cristo que, segundo sua vontade, constituem uma comunidade de irmãs e irmãos e, portanto, a Igreja visível de Deus no mundo. A este processo impulsionado pelo espírito de Pentecostes os homens acrescentam suas raízes e sua identidade cultural e se deixam transformar pelo espírito de Deus para uma identidade comum mais elevada. Deste modo, cresce o conhecimento de que somos filhos de Deus, chamados a uma vida exemplar, destinados à perfeição no futuro divino. E assim a Igreja pode ser em Cristo o sacramento da salvação do mundo e o sinal e instrumento da íntima união com Deus e da unidade de todo o gênero humano (ver Lumen Gentium 1).

Las Casas nomeia em sua brevíssima relação da destruição das Índias ocidentais a verdadeira causa da tremenda injustiça que os conquistadores espanhóis cometeram contra as pessoas que encontraram em sua viagem de descobrimento.

Sobre aqueles que eram cristãos de nome, mas não por sua conduta, Las Casas disse: “A única e verdadeira causa do assassinato e da destruição dessa espantosa quantidade de pessoas inocentes nas mãos de cristãos era exclusivamente apoderar-se de seu ouro”. (3) Gustavo Gutiérrez formulou este caminho libertador de Las Casas com o seguinte juízo: “Deus ou o ouro”. (4)

Este é o caminho rumo à libertação segundo nos ensina Jesus no Evangelho: “Não se pode servir a dois senhores, a Deus e ao dinheiro”, e em outro lugar especifica: “A raiz de todos os males é o amor ao dinheiro” (ver Timóteo 6, 10).

Aquele em quem colocamos a nossa confiança, esse realmente é o nosso Deus. Os cristãos do século XXI, mas também os humanistas, se orgulham de ter deixado para trás o colonialismo e o imperialismo eurocentristas. Contudo, na justa indignação diante das atrocidades perpetradas na conquista da América, África e Índia e a humilhação da China, corremos muitas vezes o perigo de acreditar, sentindo-nos moralmente seguros, de que no século XVI nós teríamos estado do lado de Las Casas e contra os exploradores. Evidentemente, as circunstâncias históricas de então não são sem mais comparáveis com as do mundo globalizado atual. Não obstante, a alternativa fundamental entre a opção pelo dinheiro e o poder, de um lado, e Deus e o amor, do outro, se apresenta hoje também a cada pessoa em particular e tanto a todas as comunidades e sociedades como a Estados e Alianças. Também hoje, continentes inteiros, como a África e a América do Sul, são marginalizados. Uma pequena parte da população mundial reparte entre si os recursos contribuindo deste modo para a morte prematura de milhões de crianças e para que a maior parte da população do mundo viva em circunstâncias desastrosas.

Depois da queda do império soviético muitos esperavam também o fim da Teologia da Libertação, que situavam próxima dos movimentos de libertação marxistas. Mas na verdade a Teologia da Libertação bem entendida desde a sua concepção original, é a melhor resposta à crítica marxista da religião, tanto na teoria como na prática. Uma ampla visão de Deus como criador, libertador e consumador do homem nos permite perceber a armadilha dualística em que se pretendia fazer cair o cristianismo. Não há alternativa entre o bem-estar neste mundo e a salvação no outro, entre a graça divina e a atuação humana, entre o compromisso eclesial e a crítica e configuração do mundo. A orientação para Deus e a configuração do mundo, o amor a Deus e o amor ao próximo são os dois lados da mesma moeda. Os cristãos não se deixam ultrapassar por ninguém quando se trata dos direitos e da dignidade humanos, ou de criticar tanto o pecado estrutural de um sistema político injusto como a falta de responsabilidade do indivíduo concreto. Durante a apresentação das obras completas do Papa sobre a Teologia da Liturgia, publicadas por mim na Editorial Herder, um dos conferencistas citou a bela sentença: “Quando os monges descuidaram dos seus louvores a Deus aguou-se também a sopa dos pobres”.

Louvar a Deus incita a tomar responsabilidade pelo mundo. E o compromisso com a justiça social, a paz e a liberdade, a proteção da natureza como base da vida corporal e social fundamenta-se na atuação divina criadora e libertadora.

Depois da queda do comunismo estabelecido alguns chegaram a pensar que agora se poderia obter o paraíso na terra através de um capitalismo desenfreado. As forças autorreguladoras do mercado em escala mundial trariam por si mesmas o bem-estar para todos ou ao menos para a maioria. A realidade é muito diferente. Não foram as aparentemente todo-poderosas forças do mercado, mas a mera cobiça de homens concretos, que provocaram a atual crise financeira mundial, cujas consequências são pagas uma vez mais pelos pobres e pelos mais pobres dos pobres, com sua vida, sua saúde, com sua morte prematura e todas as perspectivas perdidas, previstas por Deus para eles.

Os representantes do liberalismo defenderam no passado sua imagem de homem argumentando que não se pode governar o mundo com as bem-aventuranças, sem considerar que Jesus não pretende governar o mundo, mas que o homem se governe a si mesmo, se liberte de sua cobiça e possa converter-se em ser humano para os demais. Argumentavam que a Igreja não entendia nada de economia e capitalismo e que se queria ser altruísta o fizesse ocupando-se das vítimas do capitalismo. Igreja relegada aos hospitais, às residências de moribundos, mas não ética para Wall Street. Expressão de um capitalismo neoliberal sem escrúpulos são, por exemplo, os “fundos buitre” (vulture funds). Especuladores sem escrúpulos se especializaram em negócios com as dívidas de países inteiros. Quando um país incorre em dificuldades de pagamento esses “buitres” [abutres] compram as dívidas com altas reduções sobre a soma original e reclamam depois com juros e juros acumulados uma soma marcadamente superior.

De forma bem simples leva-se um país à miséria definitiva. No final de 1990, o Peru foi vítima de uma “estratégia de investimentos” em que com um investimento de 11 milhões de dólares obteve-se um lucro de 58 milhões. As consequências para as pessoas – as crianças, os anciãos, os doentes –, para toda a estrutura social de um país são aceitas como consequências lógicas. O lucro puro é a única meta.

Aqui se manifesta de maneira espantosa a tragédia de um mundo, de um mercado econômico sem normas morais vinculantes. A cobiça pelo ouro e pelo dinheiro segue sendo hoje causa da destruição de valores morais, cuja força para o bem do homem emana da única fonte que conduz o home ao seu ser humano e a converter-se no próximo de seus semelhantes.

Incompatíveis com a nossa espiritualidade e a nossa fé cristã são o racismo e o paternalismo, uma sociedade que se desagrega em classes mais altas e baixas, que funciona segundo o princípio da lei do mais forte e com isso se desintegra.

Após tantas décadas de terrorismo e contraterrorismo à custa de muitos milhares de inocentes, especialmente da população indígena pobre, criou-se (5) a Comissão da Verdade e da Reconciliação presidida pelo professor Salomón Lerner. Todos vocês conhecem os resultados das investigações. A dimensão da barbárie posta de manifesto é estarrecedora.

Só será possível um novo começo radical, com um desenvolvimento que leve a uma sociedade mais justa e à garantia dos direitos humanos por parte do Estado. Mas também é necessária uma espiritualidade dos direitos humanos. A maior aspiração de cada pessoa, no mais profundo de sua consciência, deverá ser o tomar consciência da responsabilidade do homem diante de Deus e do espírito de fraternidade. Só assim se poderá limitar a cobiça pelo dinheiro e pelo poder como fonte de todo o mal. E se a desculpa e a reconciliação não devem ser concebidas como obra própria, mas como dom divino e ordem de vida, pode crescer em nossos corações essa gratidão que apresenta a existência como ser humano para outros como a medida suprema do humano, das possibilidades de desenvolvimento de cada pessoa no esplendor do amor de Deus. Deus caritas est, essa é a meta e o instrumento da libertação e a perfeição do homem ao Deus Trino.

No Peru encontrei dois cristãos nos quais se simboliza a saudade do povo pela experiência da dignidade imperdível do homem: Santa Rosa de Lima e São Martinho de Porres converteram-se em amigos queridos nos quais brilham em sua forma última os objetivos da libertação e da redenção.

Permitam-me concluir estas reflexões com uma prece a Santa Rosa e a São Martinho para que protejam a Igreja e os peruanos intercedendo ao Pai celestial e Criador para que Ele nos revele o seu Filho como o mediador da esperança para a transformação do mundo para a meta mostrada pelo espírito de Pentecostes: “Em todos eles havia temor, por causa dos numerosos prodígios e sinais que os apóstolos realizavam. Todos os que abraçaram a fé eram unidos e colocavam em comum todas as coisas; vendiam suas propriedades e seus bens e repartiam o dinheiro entre todos, conforme a necessidade de cada um. Diariamente, todos juntos frequentavam o Templo e nas casas partiam o pão, tomando alimento com alegria e simplicidade de coração. Louvavam a Deus e eram estimados por todo o povo. E a cada dia o Senhor acrescentava à comunidade outras pessoas que iam aceitando a salvação” (At 2, 43-47).

Notas:
1. CELAM. Conclusões da Conferência de Medellín – 1968; Conclusões da Conferência de Puebla. Evangelização no presente e no futuro da América Latina.

2. GUTIÉRREZ, Gustavo. Beber em seu próprio poço. Itinerário espiritual de um povo. São Paulo: Loyola, 2000.

3. Em português, encontra-se no livro LAS CASAS, Frei Bartolomeu de. Liberdade e Justiça para os Povos da América — Oito Tratados Impressos em Sevilha em 1552. São Paulo: Paulus, 2010.

4. GUTIÉRREZ, Gustavo. Deus ou o ouro nas Índias. Século XVI. São Paulo: Paulinas, 1993.

5. Ver LERNER FEBRES, Salomón; SAYER, Josef (Ed.). Contra el olvido Yuyanapaq. Informe de la Comisión para la Verdad y la Reconciliación Perú, 2008.


Vale a pena ler a entrevista com  Gerhard Müller

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